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Eu sei

Eu sei, eu deveria estar feliz. Eu me peguei segurando as lágrimas porque não achava justo eu chorar. As lágrimas disseram que, se elas caem, há motivo, e quem sou eu pra impedir? Correram na minha face, e os dedos as seguraram e as secaram, acariciaram meu rosto e ofereceram um colo. Eu deixei passar, cantei um pouco, tomei o suco de uvas alcoólico. Seria o choro um efeito das uvas? Meu eu, porém, dizia que não, era um efeito de minha mesma, de não saber lidar com a alegria, de achar que já vinha a tristeza, de saber que o fardo continua nas minhas costas. Eu escolhi carregar um peso nas costas, desde quando me eximi disso? Sempre soube que não seria leve nem fácil o caminho que eu queria percorrer, mas escolhi cada trecho de modo que me guiasse aonde eu queria chegar. E agora, como voltar atrás? Por que voltar? Meus olhos se encolheram e quiseram sair da realidade, fugir, fechar, apagar as memórias, encharcar de água. Todo o sal que se mistura à água e sai tem um motivo, agora foi e

Deus está ocupado.

Eu não sei como Deus poderia se ocupar de mim. Crianças com fome na África, guerras civis no mundo, homicídios a todo instante, famílias em separação, suicídios, doenças incuráveis e torturantes, pais morrendo, mães morrendo, filhos morrendo, dores enormes e permanentes. Então eu passei a pensar que Deus não tem mais tempo, que ele não poderia e sequer teria como se preocupar comigo. Eu não estava doente, meus pais estavam vivos, meus amigos viviam bem, eu não passava fome. Deus tinha milhares de outras ocupações. Parei de pensar em Deus quando eu tinha medo, porque não achava que meu medo era plausível para chegar a Deus. Por que, então, eu tinha medo? Não chamava Deus quando sentia dor, fosse ela no corpo, fosse na alma. Pensava que minha dor, por mais que latejasse, era pequena diante das dores mundiais. Se eu desejava algo que não tinha, não me lembrava de Deus, ficava conformada e arranjava um modo de esquecer o desejo, porque ele não era comparável a pedidos que devem ser feito

Machos.

De todas as nossas dores, o senhor não sabe? Do descaso conosco, da nossa luta, das nossas perdas e, por fim, das nossas vitórias? Não vê que, antes de sabermos o que somos, fomos muito destroçadas, de corpo e de alma? Não entende que nossos corações eram cheios de medo, nossas mãos eram sempre aflitas, nossos nervos estavam, o tempo todo, à flor da pele? O senhor, falando assim, não se recorda de que há mulheres das quais gosta, que não são assim tão maldosas como você acha? Lembra que estamos de mãos dadas, abraçadas, amarradas, empoderadas, cientes do nosso valor e da nossa vida? Se o senhor não sabe, eu digo agora, porque o seu discurso me apavora, parece velho, mas foi há uma hora, transforma nosso sonho em pesadelo, nossa conquista em derrota, nossa paz em violência. Qual o desprezo que você sente tanto, que exala como ódio e rancor, com a covardia aberta no meio do peito, deixando sair pela boca? Quantas vezes você foi ferido para atacar tanto assim as mágoas alheias, parecendo

Disposta

Morávamos em Estados diferentes e combinamos que iríamos nos encontrar no meio do caminho. Estávamos bem dispostos. Eu era disposta. Principalmente quando eu via um sorriso que eu gostava. Eu gostava do seu. Tinha dois dentes maiores bem na frente. Uma nítida opção de não ter usado aparelho. Eu amava. Eu bati meus dedos, meio bobos, nos seus dentes várias vezes, dizendo como eu gostava deles. Estávamos animados, sentados conversando sobre nossas vidas. Nós dois queríamos que elas se cruzassem muitas vezes dali por diante. Eu conseguia imaginar o cansaço ao final da semana, a estrada na frente, a alegria em chegar... Depois muitos beijos e abraços, conversas cheias de novidades, e tudo seria bom e feliz. Voltaríamos aos nossos lares cheios de saudade, e até de amor, ansiosos pelo novo dia em que iríamos nos encontrar. Faríamos planos e viagens a lugares novos, guardaríamos muitas lembranças e histórias. Eu gostava da sua dedicação, sempre disse que ser esforçado é o que mais se busca.

Alegria

Adorava as pedrinhas de areia esfoliando o joelho. Catar conchinhas diferentes e pedras que rolam por ali há muitos anos. Pegar jacaré e subir à superfície depois que veio a onda grande. Sentar na beira e ouvir a voz daquela onda pequena que era quase muda. Sentir a espuminha bater nos pés clareados pelos grãos. Boiar na água com o sol queimando a ponta do nariz grande. Ficar "estatelada" sem se preocupar com os sinais na pele. Encher-se se vitamina D. Ficar com o cabelo duro de sal, a canela seca de sol. A canela preta de sol. Andar com os pés vagarosos ou rápidos, como quisesse. Deixar-se ser enterrada pelas mãozinhas pequenas. Construir castelos e ocas de índio, com pontes e riachos. Uma piscina no meio do mar, onde cabem nós três. Era bom ser grande e cavar mais o buraco. Correr feito boba pra alegrar a cachorra maluca. Olhar o céu ficar laranja, rosa, azul, preto. A lua de um lado, o sol do outro. Ver a lua nascer com o maior brilho que já houve. Tantas

Meus sentimentos

"Meus sentimentos". A todo instante. Era melhor mesmo. "Meus pêsames", como diz a palavra, manifesta um pesar. Parecia que eu não conseguia sentir esse peso. Sentia sentimento, mas não havia muitos quilos. "Meus sentimentos" expressava um genuíno compartilhar emoções. Um entendimento, um afeto. Como se a pessoa dissesse que sabe do seu sentimento, mesmo que não seja você. Ela não sabe, mas deseja dizer que sabe do que você pode estar sentindo. E, por mais que tudo digo ao contrário, as pessoas são expressões de solidariedade. Porque nada mais no mundo pode sentir igual, a não ser uma pessoa, que tem (ou deveria ter) sentimentos. Ou "sinto muito". Eu sempre pensava que, na língua portuguesa, não há uma expressão tão boa quanto a inglesa "I'm so sorry". Talvez "sinto muito" seja quase que tão boa. Mas não falamos, não se vê alguém dizendo "sinto muito" por aí. Quem me disse "sinto muito" foi um professor

Pedrinha que brilha

O vô queria porque queria me dar um anel de formatura. Com o rubi em cima. Pra minha doutora. Não precisa, vô, eu dizia desde que passei no vestibular. Eu nem vou usar. Não acho bonito. A mãe viajou pra Minas. Em Minas, a gente sabe que tem (tinha) muito ouro. Foi perto de eu me formar. Ela veio me dizer que o vô mandou comprar o anel. Sabia que eu não queria, e agora, o que ia fazer? Mandei comprar um anel barato, bonitinho, pra ele ficar feliz (e eu também). Ia servir da mesma forma, satisfazer a vontade dele e suprir a minha falta de vontade de andar com um rubi no dedo. Era lindo, a mãe acertou! Só uma florzinha talhada em ouro com uma pedrinha brilhante em cima (que não era vermelha). E foi tão barato! Minas parece que ainda tem ouro. Fingi que ainda não tinha visto quando o vô veio me dar. Dei o mesmo sorriso que quando vi a primeira vez. Achei mesmo lindo. Ele ficou contente demais. Toda vez que eu ia lá, botava o anel, pra ele ficar mais alegre. Fiz o juramento com e