luto.

Era uma vez uma família pobre. Mãe,pai,alguns filhos,uns 7 filhos. A mãe morreu. O pai era irresponsável. Eles não tinham onde morar e moravam junto com outra família - também pobre e cheia de filhos.
Era uma vez uma mulher do coração bom e grande, que quis ajudar e construiu,com a ajuda de uns amigos, uma casa pra eles morarem.
E eles não foram morar lá. E ninguém sabia o porquê.
Até que descobriram. Descobriram que usavam a casa pra outras coisas - relacionadas a drogas e a crimes.
E que fedia. Fedia à morte. Porque alguém morto estava lá. Enterrado.


Essa mulher é minha mãe, e essa família existe. E eles são mesmo muito pobres,assim como muitas pessoas que moram perto deles. Aquela pobreza de pé no chão e cabeça coçando com piolho no cabelo. Aquela pobreza de olhos tristes e de corpo sujo. Aquela pobreza de não ter o que comer e de não ter em que comer. De não saber ler,escrever,falar,ouvir,olhar... Aquela pobreza que não deveria mais existir,mas que existe.
Eu conheço desde que sou pequena essa pobreza,porque minha mãe costumava me levar lá pra ver e,confesso,eu não gostava de ir,porque me dava pena e porque eu não entendia e não queria pegar piolho. Quando eu fui crescendo e íamos lá no Natal,dias das crianças... e vinha aquela dezena de crianças correndo, com um sorriso no rosto - acho que o sorriso mais sincero que pode existir - eu entendi porque minha mãe fazia aquilo e porque ela queria me mostrar. Queria me mostrar o quanto eu tinha e reclamava e o quanto eles tinham e se davam por extremamente felizes e satisfeitos com uma boneca de plástico,uma bola de 1 real, um copo de refrigerante, um pedaço de bolo. E passei a ficar feliz quando ela me levava e a fazer questão de ir. Pra ver a felicidade de verdade. E sempre achei mesmo injusto. E sempre parava pra refletir que eu tinha comprado uma roupa cara, ou gastado dinheiro à toa e o quanto tantas pessoas tinham tanto e rasgavam dinheiro por aí, enquanto aquele povo estava ali,sem um short pra vestir. E ficava me perguntando : Por que isso existe? Por que, neste século,cheio de invenção pra tudo no mundo não arrumaram um jeito de acabar com a pobreza? Mas,realmente,nunca achei respostas. E nunca vou achar.
Enfim, o que eu estava contando era a história do cadáver. Que foi enterrado na casa que minha mãe lutou - posso dizer isso porque eu vi o quanto ele pediu às pessoas pra ajudarem, endividou-se, fez tudo que podia e não podia pra construir a tal casa, que não era uma casa maravilhosa e tal, mas tinha um banheiro pelo menos e tinha quartos,porque eu lembro que ,na casa antiga deles, eles dormiam na sala numas redes penduradas na madeira do telhado e faziam as necessidades no "quintal",pra usar um eufemismo. E aí,eu podia dizer que,por serem sem - vergonhas mesmo, eles não foram morar lá,mas eles não têm mesmo culpa de não saberem o que é que estão fazendo . E eles não foram, e o carinha lá que era marido da filha,não sei bem quem era, começou a usar a casa com ponto, pra vender drogas,pra usar, e,no final, pra enterrar um cara morto nessas brigas de gangue. Isso não é coisa que a gente vê todo dia, e,putz, eu fiquei superchateada quando vi o quanto a minha mãe ficou triste por saber disso. Acho que,no fundo,não que ela tenha se arrependido e não que eles não precisassem bastante,mas acho que ela pensou que podia ter feito isso por outra família,que tivesse dado valor.
E, bom, o que eu queria mesmo dizer, é que meio que desisti de achar que as coisas podem mudar um dia ainda neste país,neste mundo. E pensei,realmente, mais uma vez ingenuamente,que isso pudesse ter jeito,que um dia todo mundo iria viver feliz,ter uma casa,comida,vida digna,sem drogas,sem violência. E que utopia,não  é? É claro que isso não vai acontecer. Nunca. Porque tá tudo na casa do sem jeito. Aquele sem jeito que nem reza braba ajeita,que nem prece de criança salva, que nem se todo mundo pedisse junto podia mudar. Aquele sem jeito de morte. Por isso,que estou de luto. Não pelo cadáver enterrado. Mas por mim,pela sociedade. Não é por causa disso,não é por causa dessa casa ou dessa família, isso foi só uma gota que fez a água transbordar do copo. É por tudo,por tudo que a gente vê todo dia. Por toda essa miséria,por toda essa violência,por toda essa corrupção,por toda essa maldade. Eu podia usar isso e dizer,ah,vamos votar consciente em fulano ou em fulana pra que isso mude,pra que essas coisas não aconteçam mais, mas, sinceramente,eu não acho que seja consciente o voto dado a qualquer um dos dois. Acho que seja forçado,forçado porque a gente não tem opção. Porque a gente não tem salvação. E não tem porque simplesmente existe uma grande maioria que não quer que as coisas mudem. Porque tá tudo muito bem. E daí que eles não tem o que comer? onde morar? e daí que eles tão se vendendo pra usar crack? e daí que várias pessoas morrem todo dia por causa da violência? e daí? foi eu? foi  meu pai? minha mãe? minha irmã? minha família? Ah,não. E quem foi? A Raimunda que mora na favela. Ah,quem mandou ela ir morar lá! Não tenho nada a ver com isso. Porque quando as coisas não nos atingem, nós simplesmente as ignoramos. E é assim que sempre vai ser.
Acho mesmo é que Deus está certo. De querer que esse mundo se acabe. Resta tão pouca coisa do que ele quis que isso fosse. Resta pouca bondade,pouco amor.
E, tudo bem você me chamar de hipócrita porque eu escrevo tanto e não faço nada. Então,me diz o que eu faço. Construo uma casa pra uma pessoa pobre? Dou comida? Brinquedo? Roupa? Olha aí,essa parte eu já fiz. Parece que não é esse o caminho,parece que ele tá meio obscuro.
É verdade que se você não começar sozinho,ninguém vai se unir e tudo vai ser sempre assim. O problema é que você vai ficar sozinho sempre. E é fácil pensar que alguém vai se unir a você, pegar uma bandeira e sair por aí mudando as coisas. Difícil é concretizar. Difícil é mudar uma sociedade podre e morta que nem a nossa. E posso até não fazer muita coisa,mas não acho que as coisas estão bem, não nego a minha preocupação,aliás,não nego a minha desilusão.

Vem ai o cortejo. Batam palmas para o caixão! E joguem as flores,por favor.

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